Entenda em que situações o jogo de búzios está presente na religião e por que
O jogo de búzios é muito popular nas religiões de matriz africana. Principalmente no candomblé, em que todo pai e toda mãe de santo deve saber consultá-lo. Mas há um jogo de búzios na umbanda também? A melhor resposta para essa pergunta é: “depende”.
Mas depende do que? Da vertente de umbanda que se pratica e da tradição de cada terreiro. Vamos entender isso em detalhes nos parágrafos abaixo.
Mas antes é preciso entender o que é o jogo de búzios e a sua origem.
O que é o jogo de búzios? Como surgiu?
Esse oráculo surge entre o povo yorubá (iorubá), etnia africana que presta culto a orixá. Os iorubás foram trazidos para o Brasil como escravizados nas últimas ondas de tráfico negreiro. E assim exerceram uma influência muito forte sobre as religiões afro-brasileiras. Muitas vezes sobrepondo-se à influência de outras etnias presentes em solo brasileiro há mais tempo.
Em sua cultura, são usados diversos oráculos para se comunicar com seus orixás e ancestrais. Um dos mais populares é o èrìndínlógún, em que 16 búzios são jogados ao chão e interpretam-se os odus formados, de acordo com a quantidade de búzios que caem abertos ou fechados.
Na “iorubalândia”, o método para se interpretar o èrìndínlógún, embora tenha grande consistência, pode variar um pouco de região para região.
No Brasil, um método de interpretação foi criado por um sacerdote conhecido como Bamgbose Obitikú (Rodolfo Martins de Andrade). Ele foi ensinado às três mulheres que fundaram o ilê Axé Iyá Nassô Oká (Casa Branca do Engenho Velho), primeiro terreiro de candomblé de Nação Ketu. Seus nomes eram Iyá Detá, Iyá Kalá e Iyá Nassô. Isso aconteceu por volta de 1830.
A partir daí, o jogo de búzios se tornou fundamental no candomblé e foi adaptado às outras nações da religião, como a Nação Angola e Nação Jeje.
No jogo de búzios há 16 “quedas” que correspondem aos 16 odus interpretados nesse sistema oracular. Cada odu contém inúmeros ìtàn (lendas) e ese (versos). Os quais são usados para interpretar o problema do consulente, fazer previsões e dar recomendações. As recomendações podem ser, por exemplo, correções no comportamento do consulente, ebós ou mesmo a iniciação para um orixá (feitura de santo).
Não há candomblé sem jogo de búzios. E é impossível ser um babalorixá sem saber jogá-lo e interpretá-lo com competência.
Mas e na umbanda, funciona da mesma maneira?
Oráculos na umbanda
A umbanda tem uma característica que a difere muito do candomblé.
No candomblé, o orixá usualmente não fala e é preciso usar o jogo de búzios para receber seus recados. Na umbanda, ao contrário, as entidades incorporam para dar consultar e suas recomendações diretamente ao consulente. Não é necessário um oráculo para consultá-las. Na realidade, a própria entidade incorporada é o oráculo da umbanda.
Assim, podemos concluir que a umbanda não precisa de oráculos para a sua prática. É justamente o oposto da situação do candomblé.
Embora haja, sim, o uso de oráculos na umbanda (isso será tema de outro artigo), eles não são fundamentais e imprescindíveis na religião. Um pai ou uma mãe de santo de umbanda pode dirigir o seu terreiro sem fazer uso de nenhum sistema oracular.
Apesar disso, é fato inegável que o jogo de búzios está presente em muitos terreiros de umbanda. Vamos agora entender em que situações isso acontece.
O jogo de búzios em umbandas traçadas
A umbanda se divide em inúmeras “vertentes”. Um grande número delas podem ser reunidas em um mesmo grupo que denominado “umbanda traçada ou cruzada”. São as umbandas em que há uma forte influência dos cultos de nação e de orixá, especialmente (mas não unicamente) do candomblé.
Nessas vertentes, é comum o uso do jogo de búzios, ainda que geralmente o método de leitura e interpretação possa ser um pouco diferente do candomblé.
Nas muitas umbandas traçadas, o jogo de búzios costuma ser usado para se descobrir quem são os orixás de um filho de santo e dar orientações para o seu desenvolvimento. Também pode indicar ebós para remediar problemas do consulente, como no candomblé.
A vertente de umbanda traçada mais conhecida e que adota o jogo de búzios é a umbanda omolokô, que foi amplamente divulgada por Tata Tancredo da Silva Pinto (Fọ̀lkétu Olóròfẹ̀). A umbanda de Almas e Angola, originada no Rio de Janeiro e atualmente mais popular em Santa Catarina, também faz uso deste oráculo. Assim como muitas outras umbandas cruzadas.
Quando o terreiro é de umbanda, mas também toca candomblé
Outra situação em que o jogo de búzios está presente em um terreiro de umbanda acontece quando o dirigente também é feito no candomblé.
Nestes casos, as duas religiões são praticadas separadamente (não são “traçadas”), mas o dirigente joga os búzios para seus filhos de santo e consulentes. É comum nesses casos que os orixás dos filhos de santo de umbanda sejam confirmados nos búzios do candomblé.
Esta é uma situação que se tornou muito comum, conforme dirigentes umbandistas buscaram iniciação no candomblé. Ou quando babalorixás do candomblé se desenvolveram posteriormente também na umbanda.
Há um jogo de búzios na umbanda específico dessa religião
Há ainda uma terceira situação em que o jogo de búzios pode estar presente na umbanda. Isso ocorre em vertentes umbandistas que desenvolveram o seu próprio jogo de búzios, totalmente adaptado à religião e dissociado do método do candomblé. São métodos diferentes também daqueles usados nas umbandas traçadas.
Por exemplo, em seu livro Manual dos Chefes de Terreiro e Médiuns de Umbanda, publicado em 1961, José Antônio Barbosa menciona um jogo de 12 búzios. Destes, sete são consagrados às sete linhas da umbanda e os demais a entidades. Infelizmente, o autor não dá mais detalhes sobre o método.
Além disso, o curso de sacerdócio da Federação Umbandista do Grande ABC (FUGABC), criado pelo Pai Ronaldo Linares, ensina um método de jogo de búzios semelhante ao mencionado por José Antônio Barbosa. Nele, usam-se 16 búzios, sendo 10 consagrados a orixás e 6 consagrados a entidades.
Pai Ronaldo diz em seu livro Jogo de Búzios que ele aprendeu essa forma de jogo com um homem que ele identifica apenas como “Velho da Praia”. Que seria um oraculista a quem o próprio Joãozinho da Goméia (famoso babalorixá de candomblé Angola, que foi pai de santo do Pai Ronaldo) recorria em casos de grande necessidade.
No método ensinado pela FUGABC, a leitura não se dá por odus. A interpretação é totalmente diferente e peculiar.
Resumidamente, os búzios são jogados em uma peneira de palha e observa-se primeiro a posição em que cai o búzio de Oxalá. Traçam-se duas linhas imaginárias para separar os búzios em três grupos. Aqueles que estão à frente do búzio de Oxalá representam o futuro. Aqueles que estão atrás representam o passado. Aqueles que estão próximos representam o presente.
Esse jogo de búzios de umbanda é usado para fazer previsões, mas não recomenda ebós. Também é usado para determinar os orixás de frente e juntó do filho de santo (ato que costuma ser realizado no dia do seu batismo no terreiro).
É importante notar que, em todos os casos mencionados nesse artigo, o jogo de búzios não pode ser aprendido sozinho, por meio de livros, apostilas ou cursos. É um oráculo que requer uma iniciação para funcionar e deve ser transmitido de um sacerdote a outro. É possível aprender a teoria por meio de materiais de apoio, mas o principal é a transmissão do axé, que só acontece em rituais e obrigações de iniciação, conforme a tradição de cada terreiro.
Foto: Wikimedia Commons.